Uma vacina contra a COVID-19: as primeiras etapas de um ensaio clínico e os resultados promissores

24 jul 2020

Desde o final de 2019, chegam-nos, em catadupa, notícias sobre a infeção pelo SARS-CoV-2. Uma das mais aguardadas, porém, será a eventual notícia de uma vacina, comprovadamente segura e eficaz, que permita proteger-nos do vírus. Reconhecendo que o caminho até lá será certamente longo, demorado e exigente, cientistas de todo o mundo têm vindo a reunir esforços para aumentar o conhecimento de que dispomos sobre o vírus e também sobre a forma como o sistema imune estabelece as suas respostas perante esta desafiante infeção.

Os autores do artigo recentemente publicado na revista The Lancet apresentam dados importantes para a continuação desta demanda, com resultados do primeiro ensaio em humanos de uma vacina recombinante para a COVID-19. Esta vacina, uma das mais de 100 candidatas atualmente em desenvolvimento, é na realidade um adenovírus modificado, sem capacidade de replicação, mas que permite a expressão da “famosa” glicoproteína S (spike) do SARS-CoV-2. Para que possa vir a ter aprovação, a vacina terá de passar rigorosos critérios de segurança e mostrar-se comprovadamente capaz de induzir a tão almejada imunidade protetora. O trabalho apresentado na The Lancet expõe uma das etapas deste processo, um ensaio clínico de fase 1.

Para este efeito, foram recrutados participantes sem contacto prévio com o SARS-CoV-2, comprovado pela ausência no soro de anticorpos IgG e IgM para o vírus (testes serológicos), ausência de ácidos nucleicos virais em amostras respiratórias e nasais (pesquisa por PCR), e ausência de lesões pulmonares observáveis em exame por Raio X. Sequencialmente, estabeleceram-se três grupos de participantes, aos quais foi administrada a vacina, por injeção intramuscular, em dose baixa, média ou alta. De forma a permitir o reconhecimento precoce de potenciais efeitos adversos, que limitariam a continuidade do ensaio, o primeiro grupo de participantes (dose baixa da vacina) foi acompanhado durante três dias, e só depois se deu início ao recrutamento do segundo grupo, que iria receber a dose intermédia. O segundo grupo foi igualmente acompanhado ao longo de três dias após-vacina, e só depois foi dado início ao recrutamento do terceiro grupo, que viria a receber a dose alta. Todos os participantes foram monitorizados por 28 dias.

Neste ensaio de fase 1, pretendia aferir-se a tolerância dos indivíduos à vacina, bem como avaliar a sua capacidade de induzir imunidade humoral (pela presença de anticorpos) e de estimular respostas imunes celulares, assumidas por populações especializadas de linfócitos, as células T. Em relação à tolerância e, foi feita a avaliação de efeitos locais e sistémicos. Cerca de metade dos doentes de cada grupo reportaram dor na zona da injeção (54%). Ao nível sistémico, as queixas mais frequentes foram febre (46%), fadiga (44%), cefaleia (39%) e dor muscular (17%). Globalmente, não se verificaram diferenças significativas nas reações adversas entre os grupos, ainda que a dose alta da vacina tenha levado alguns doentes a manifestar efeitos mais severos. Na generalidade, as manifestações foram de intensidade ligeira a moderada, transitórias e autolimitadas, muito semelhantes às observadas em outras vacinas com o mesmo vetor (ferramenta usada em biologia molecular para inserir material, como ADN ou genes, em células). Alguns biomarcadores, como as enzimas hepáticas, foram monitorizados ao longo do estudo, sem que se verificassem alterações com significado clínico em qualquer dos grupos. Estes aparentes bons indicadores, do ponto de vista da tolerância, carecem, ainda, de estudos mais prolongados para que possam tomar-se decisões definitivas e consistentes acerca da segurança da vacina.

Partindo para a abordagem imune, avaliaram-se títulos de anticorpos contra o vírus e também a sua ação neutralizante, que atesta a sua potencial eficácia. Os anticorpos anti-SARS-CoV-2 foram identificados no soro ao 14º dia após a administração da vacina, atingindo-se o seu pico no dia 28, independentemente da dose de vacina administrada. Ainda assim, os maiores títulos de anticorpos para diferentes componentes do vírus foram identificados no grupo que recebeu a dose mais elevada da vacina.

A resposta celular é um pilar da resposta imune, e é pois um elemento que não pode ser descurado na avaliação (clínica) das vacinas. Sobretudo quando se pretende uma imunidade duradoura, que é substancialmente assegurada por uma rede de células de memória, em constante comunicação e vigilância. Assim, são significativos, também, os resultados observados neste estudo para a resposta celular. Quando estimuladas, as células T circulantes produzem citocinas, que são pequenos mediadores com papel crucial na orquestração da resposta imune. No momento da administração da vacina, foram isoladas células T dos indivíduos em estudo e expostas in vitro às proteínas do vírus, não se verificando qualquer resposta. No entanto, aos 14 e aos 28 dias pós-vacinação, foi repetido o procedimento, sendo claramente identificada uma resposta celular T com produção de citocinas após incubação com proteínas virais. Aqui, o pico de resposta foi mais precoce, de algum modo antecedendo a resposta humoral, ela própria orientada pelo perfil de células T. O boom da resposta celular (manifestado pela produção aumentada de Interferão gama, TNF-alfa ou Interleucina-2) estabeleceu-se logo no 14º dia pós-vacinação, em todos os grupos, havendo, contudo, alguma limitação das respostas no grupo ao qual foi administrada uma dose baixa da vacina, como mostraram os ensaios por ELISpot e a avaliação por Citometria de Fluxo.

Apesar dos elementos promissores no que respeita quer à potencial aplicação, quer ao tipo de resposta gerada, surgem ainda alguns desafios na exploração dos resultados do estudo. A escassez do número de participantes (apenas 36 por grupo, e sem grupo de controlo) e do tempo de monitorização (28 dias pós vacina), são limitações que os ensaios de fase 2 virão a completar, quer no âmbito da segurança da vacina, quer na abordagem da continuidade das respostas para além deste período. Por outro lado, ainda que o vetor usado (Ad5) seja um formato já bem estabelecido em protocolos de imunização, parece importante esclarecer as observações deste estudo que mostram que a presença de imunidade prévia contra o próprio vetor interfere com o nível de resposta específica gerada (humoral e celular) contra o SARS-CoV-2, apesar de não a impedir.

Em conclusão, a vacina estudada pelos autores mostrou ser bem tolerada e imunogénica, ou seja, capaz de induzir uma resposta imune, humoral e celular, sem gerar efeitos adversos significativos. As evidências do estudo mostram que as células T têm resposta 14 dias após a administração da vacina e que cerca de um mês mais tarde são encontrados anticorpos com potencial de neutralização contra o vírus. Perante estes resultados promissores, impõe-se, portanto, a continuidade do estudo, que já se encontra em curso, com a monitorização dos grupos até aos seis meses pós vacina, mas igualmente dando o passo seguinte, com um ensaio de fase 2, para o qual foram selecionadas as doses baixa e intermédia da vacina (eficazes e menos reativas do que a dose alta).

 

Cientista autor do texto: Catarina Martins

Tradução: Maria Serrano e Catarina Martins

Artigo científico: Safety, tolerability, and immunogenicity of a recombinant adenovirus type-5 vectored COVID-19 vaccine: a dose-escalation, open-label, non-randomised, first-in-human trial

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