Manifestações neurológicas em doentes com COVID-19

04 jun 2020

A COVID-19, causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, afecta principalmente o sistema respiratório. Porém, recentemente, vários estudos têm sugerido que os doentes com COVID-19 também desenvolvem sintomas e complicações neurológicas, desde dores de cabeça, tonturas e perda do olfato até convulsões, acidentes vasculares cerebrais (AVC) e encefalopatias.

Neste artigo, publicado na revista JAMA Neurology (e disponível em pré-publicação desde Fevereiro), Mao e colegas apresentam o primeiro estudo detalhado das manifestações neurológicas em doentes com COVID-19. Este estudo observacional retrospectivo (série de casos)consistiu na análise de dados vindos de 214 doentes hospitalizados com COVID-19 em Wuhan, na China, e conclui que 36,4% dos doentes apresentavam sintomas neurológicos ao nível dos sistemas nervosos central (SNC) e periférico (SNP) e dos músculos esqueléticos. Os mais comuns eram sintomas não-específicos tais como tonturas (16,8%), dores de cabeça (13,1%) e perturbações da consciência (7,5%). Quanto aos sintomas específicos, incluindo doença cerebrovascular aguda e perturbações do olfacto e do paladar, estes afectavam respectivamente 2,8%, 5,6% e 5,1% dos doentes. Apesar de os sintomas associados ao SNC serem os mais frequentes (24,8% dos doentes), sintomas associados ao SNP e aos músculos esqueléticos estavam presentes em 8.9% e 10,7% dos doentes, respectivamente.

Os autores escrevem ainda que os sintomas neurológicos eram mais pronunciados e frequentes nos doentes com doença respiratória grave. Como já tinha sido reportado noutros estudos, os doentes com infecções respiratórias graves eram também mais idosos e apresentavam mais comorbilidades (por exemplo, hipertensão), sugerindo que as perturbações neurológicas poderiam estar relacionadas a uma resposta imunitária insuficiente e a problemas cardiovasculares subjacentes, e não ser directamente causadas pelo vírus.

Diga-se ainda que a maioria dos sintomas neurológicos ocorrem muito cedo na doença (o tempo mediano após a hospitalização era de um a dois dias) e que alguns doentes chegavam a ser admitidos no hospital antes de desenvolverem os sintomas típicos da COVID-19, apresentando apenas manifestações neurológicas. Estas observações parecem suportar a hipótese segundo a qual as características neurológicas da COVID-19 não seriam apenas uma consequência não-específica e indirecta da gravidade da doença e da falência multi-orgânica dos doentes, e poderão ser causadas directamente pelo vírus.

Infelizmente, o presente estudo não permitiu abordar a questão do efeito das complicações neurológicas sobre o desfecho da doença, uma vez que a maioria dos doentes ainda se encontravam internados na altura em que foi feita a análise dos dados. Uma outra limitação importante do estudo é que a maior parte dos dados neurológicos provinha de descrições subjectivas dos doentes, visto não ser possível realizar testes de diagnóstico neurológico devido à elevada afluência de doentes com COVID-19.

Seguiram-se a esta publicação várias outras que também reportavam eventos neurológicos em doentes com COVID-19. Por exemplo um outro estudo, também vindo de Wuhan, mostrou que 9% de 274 doentes com COVID-19 tinham encefalopatias. E uma outra série de casos, desta vez oriundos de Estrasburgo, em França, descrevia sintomas neurológicos em 49 de 58 doentes (84%), que iam da desorientação aos AVC.

Não deveria ser uma total surpresa que a COVID-19 possa induzir doenças neurológicas. Muitos outros vírus, incluindo coronavírus respiratórios, podem provocar perturbações neurológicas. Mas resta saber se o SARS-CoV-2 afecta directamente o sistema nervoso. Sabe-se que outros coronavírus conseguem invadir o cérebro, mas ainda se desconhecem os mecanismos envolvidos. Embora o estudo de Mao et al., não tenha conseguido dar pistas sobre esta questão, parece possível que o SARS-CoV-2 também consiga penetrar no cérebro humano: a expressão do receptor ACE2 (utilizado pelo vírus para se fixar nas suas células-alvo) é elevada nos neurónios e já foi reportado um caso em que o SARS-CoV-2 foi detectado no líquido cerebroespinhal de um doente.

Embora continue por esclarecer se os sintomas neurológicos da COVID-19 são directamente causados pelo vírus ou uma consequência indirecta da infecção, este estudo mostra que uma proporção significativa dos doentes com COVID-19 apresenta perturbações do sistema nervoso. O estudo dos mecanismos subjacentes a estas manifestações neurológicas e a questão de saber se podem ou não provocar sequelas a longo prazo será sem dúvida o foco de futuros estudos sobre a patofisiologia da COVID-19.

 

Cientista autor deste texto: Lara Carvalho

Tradução: Ana Gerschenfeld

Artigo científico

Neurologic Manifestations of Hospitalized Patients With Coronavirus Disease 2019 in Wuhan, China

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