Concentrações de RNA de SARS-CoV-2 nas lamas de depuração primárias municipais como indicador precoce da dinâmica de surtos de COVID-19

23 jun 2020

RELEVÂNCIA: Este estudo relata que os níveis de SARS-CoV-2 nos esgotos municipais permitem antecipar em uma semana as alterações no número de casos confirmados de SARS-CoV-2. 

Quando as águas residuais brutas são descarregadas nas instalações das estações tratamento municipais, os sólidos são depositados e recolhidos numa matriz chamada lama de depuração primária, que se demonstrou conter uma grande diversidade de vírus humanos, incluindo várias estirpes de corona vírus, de circulação comum. Neste artigo, os autores avaliaram o potencial de medição do RNA do SARS-CoV-2, descrito como estando presente nas fezes, nas lamas das instalações das estações de tratamento de águas residuais, para monitorizar a prevalência e a dinâmica da infeção deste vírus em determinadas populações. Preditores epidemiológicos da doença são instrumentos críticos para os governos se prepararem para futuras vagas de infeção, implementando ou relaxando medidas de saúde pública para evitar a transmissão e atenuar o peso da doença.

MÉTODOS: Entre 19 de Março de 2020 e 1 de Maio de 2020, em New Haven, Connecticut (CT), uma área metropolitana dos EUA, foram recolhidos 2,5 mL de amostras diárias, bem misturadas, de lamas primárias da instalação de tratamento de águas residuais que serve cerca de 200 000  residentes. As lamas primárias têm um teor de sólidos superior (2 a 5%) ao das águas residuais em bruto (0,01 a 0,05%) e, por conseguinte, são mais adequadas para detetar o RNA do SARS-CoV-2. As amostras foram recolhidas diariamente entre as 8 e as 10 horas da manhã e armazenadas a -80ºC até serem analisadas. É de salientar que a amostragem começou antes da realização de testes individuais generalizados na região e antes da implementação de medidas de encerramento em todo o Estado de Connecticut. O RNA viral do SARS-CoV-2 foi detetado nas amostras por RT-qPCR. Para tal, o RNA foi extraído utilizando um kit disponível comercialmente otimizado para extração de RNA do solo e recolhido em 50 µL de água “livre de RNAse”. As amostras foram diluídas 5x e comparadas com RNA puro e analisadas para o RNA de SARS-CoV2 por RT-qPCR utilizando os “primers” N1 e N2 do Center for Disease Control, U.S. As concentrações de RNA de SARS-CoV-2 foram determinadas utilizando uma curva padrão como descrito anteriormente em doi: 10.1101/2020.03.30.20048108 e apresentadas como cópias do RNA do vírus. Os valores de RNA do SARS-CoV-2 variaram entre 1,7 x 103 cópias mL-1 e 4,6 x 105 cópias mL-1. A concentração inferior correspondeu a um valor de “cycle threshold”  (CT) no RT-qPCR de 38,75. Este valor foi estabelecido como limiar de deteção para o método e para a matriz de lama. Globalmente, 96,5% de todos os valores CT eram inferiores a 38 e os valores entre 38 e 40 foram comunicados como positivos se tivesse ocorrido deteção com os “primers” N1 e N2 da nucleocapside do vírus, em ambos os replicados. Para controlar e demonstrar o comportamento dinâmico temporal no SARS-CoV2, os valores foram comparados com os obtidos para o gene da ribonuclease humana P (RP). As lamas de depuração de 2018 foram utilizadas como controlo e não foi detetado RNA de SARS-CoV-2 usando os “primers” N1 ou N2. Estas lamas de controlo foram consistentemente positivas para o gene humano RP. As concentrações de RNA do SARS-CoV-2 foram comparadas quantitativamente com os dados dos hospitais locais e os com dados dos testes compilados na comunidade. 

RESULTADOS: O artigo apresenta um curso temporal de concentração de RNA de SARS-CoV-2 nas lamas de depuração primária durante o surto COVID-19 de 19 de Março de 2020 a 1 de Maio de 2020 na área metropolitana de New Haven, CT, EUA. Esta instalação de tratamento serve cerca de 200 000 pessoas. O número de casos de COVID-19 documentados, por testagem, aumentou durante este período, de menos de 29 para 2.609. A partir das datas de início e fim da amostragem, as cidades servidas por esta instalação de tratamento de águas residuais registaram (através de testes) um aumento superior a 85 casos confirmados da COVID-19. Curiosamente, o pico dos casos COVID-19 (16 de Abril) ocorreu 7 dias após o pico da concentração de RNA de SARS-CoV-2 (9 de Abril) detetado nas lamas. 

Durante este período, a concentração média de RNA do vírus nas lamas foi um indicador que antecedeu em sete dias os dados dos testes à COVID-19 e antecipou os dados das admissões hospitalares locais em três dias. Para as admissões hospitalares, uma análise de correlação cruzada revelou um coeficiente de correlação de R=0,996 entre os dados de RNA “smoothed” e os dados hospitalares, quando estes últimos foram deslocados 3 dias para trás. Para o pico de deteção de COVID-19, uma análise de correlação cruzada resultou num coeficiente de correlação máximo de R=0,994 quando os dados dos testes à COVID-19 foram ajustados 7 dias para a trás

DISCUSSÃO: Este artigo complementa estudos anteriores de SARS-CoV-2 em estações de tratamento de águas residuais nos Países Baixos (aqui  e aqui, ver um resumo deste último aqui) apoiando a vigilância das águas residuais como uma nova estratégia para monitorizar a prevalência e propagação do vírus na população.

Este artigo mostra agora que as concentrações de RNA de SARS-CoV-2 nas lamas de depuração primárias poderiam ser utilizadas como indicador precoce da COVID-19, juntamente com outras abordagens epidemiológicas, tais como testes generalizados e internamentos hospitalares. As concentrações de RNA de SARS-CoV-2 nas lamas anteciparam o aumento das admissões hospitalares em 3 dias e os casos de COVID-19 em 7 dias. A potencial utilidade de uma tal abordagem, embora amplamente aplicável, pode ser específica das instalações de tratamento, uma vez que os fluxos no processo de tratamento das lamas primárias não são uniformes. Além disso, este método funciona para populações de 200 000 pessoas e não foi avaliado para populações mais pequenas. Quando funciona, pode ser vantajoso em relação a outras ferramentas de testes à COVID-19 que são motivadas por sintomas, o que pode dar origem a subestimação do número real de casos.

 

Cientista autor do texto: Maria João Amorim

Tradução: Guadalupe Cabral 

Artigo científico: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.05.19.20105999v2 

 

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